Para alunos brancos, a grande dificuldade é a "falta de disciplina para estudar"
Para 26% dos estudantes negros de cursos de graduação das universidades federais brasileiras, problemas financeiros são o que mais afetam a vida e desempenho acadêmico. Já para os alunos brancos, a maior dificuldade é a "falta de disciplina para estudar".
Os dados são da pesquisa "Raça, gênero e saúde mental nas universidades federais", feita com 424 mil estudantes das 63 universidades da rede federal do país. O levantamento foi feito pelo Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa), da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Quando questionados sobre qual fator mais afetava o desempenho acadêmico, 26% dos homens e mulheres negros e pardos responderam que eram as dificuldades financeiras. Para as estudantes, o segundo fator que mais influenciava, apontado por 24%, era a falta de disciplina. Em seguida, 17% apontou o tempo de deslocamento para a universidade.
Para os homens negros, depois dos problemas financeiros, apareciam os problemas emocionais e a carga excessiva de trabalhos estudantis, com 24% e 23% das respostas.
Já entre os estudantes brancos, 31% dos homens apontou a falta de disciplina como principal fator. Outros 21% responderam não ter nenhuma dificuldade e 19% apontaram a carga excessiva de trabalhos estudantis.
Entre as mulheres brancas, o principal fator, apontado por 29%, foram problemas emocionais. Em seguida aparecem a falta de disciplina e a carga excessiva exigida pela faculdade, com 28% em cada um deles.
"A pesquisa mostra um retrato bastante claro e perverso da sociedade brasileira. Ainda que exista uma política de cotas bem consolidada nas universidades federais, o contraste continua existindo dentro dela, com uma carga econômica bastante preocupante para estudantes negros", disse João Feres Júnior, coordenador do Gemaa.
Os dados mostram ainda que, enquanto metade dos estudantes brancos recebem atendimento médico na rede privada, entre os negros o percentual cai para 29%.
Há também diferença no acesso ao atendimento psicológico e psiquiátrico. Enquanto 40% das mulheres brancas já acessaram esse tipo de serviço de saúde mental, o número cai para 29% entre as mulheres negras. Entre os homens, 28% dos brancos e 21% nos negros já tiveram algum atendimento da área.
"Os estudantes negros, independentemente do gênero, dependem mais do atendimento do SUS [Sistema Único de Saúde], onde há um maior déficit de serviços de saúde mental. O resultado é uma sobreposição das desigualdade sociais no impacto da vida acadêmica, porque as questões emocionais continuam existindo para a população negra, mas acabam em segundo plano pela dificuldade financeira", afirmou Poema Portela, pesquisadora do Gemaa.
Em 2018, seis anos após a implementação do sistema de cotas nas universidades federais do país, o número de estudantes negros no ensino superior público superou, pela primeira vez o de brancos, segundo dados do IBGE. Naquele ano, o Brasil tinha mais de 1,14 milhões de alunos autodeclarados pretos e pardos, enquanto os brancos ocupavam 1,05 milhão de vagas nas instituições públicas.
Segundo a pesquisa, a democratização do ingresso nas universidades públicas permitiu o acesso de pessoas oriundas de famílias nas quais a educação superior nunca havia sido uma possibilidade, o que pode gerar "sentimentos de inadequação em relação ao novo espaço, discriminação e pressão por desempenho acadêmico".
Para Portela, a política de acesso ao ensino superior também deveria ter ações voltadas para o atendimento psicológico dos estudantes. "Não basta criar condições de ingresso, mas ter medidas que garantam que a permanência nas universidades ocorra de maneira saudável."
"Entrar na universidade pode acessar questões psicológicas em todos os estudantes, por ser um processo de transição para a vida adulta. Mas, para esses grupos que estavam historicamente excluídos do ensino superior, pode ser ainda mais difícil se adaptar ao novo espaço, já que têm uma trajetória escolar marcada pelo racismo", disse.
Landa Costa, 36, foi a primeira de sua família a cursar o ensino superior público. Aprovada em filosofia na UFPel (Universidade Federal de Pelotas) aos 25 anos, Costa disse que a situação financeira e as diferenças com os colegas de turma foram sentidas já no primeiro, quando teve um quadro grave de depressão.
"Eu ainda tinha uma situação mais favorável do que outros colegas porque estava na moradia estudantil, recebia alimentação. Mas não tinha dinheiro para tirar uma xerox, comprar um desodorante", contou. A estudante conseguiu atendimento psicológico na universidade durante os quatro anos da graduação.
César Augusto da Ros, coordenador do Fonaprace (fórum que reúne pró-reitores de assuntos estudantis na rede federal), disse que os recursos do PNAES (Programa Nacional de Assistência Estudantil) são insuficientes para minimizar as desigualdades de condição encontradas pelos estudantes que ingressam no ensino superior.
Como os recursos são escassos, as universidades priorizam o uso da verba do programa para ações voltadas para moradia, transporte e alimentação. O orçamento do PNAES neste ano teve queda nominal de 3% em relação a 2019. O recurso do programa caiu de R$ 1,070 bilhão para R$ 1,038.
"Garantir a permanência do estudante na universidade não deve ser pensado apenas no ponto de vista da sobrevivência, mas em uma permanência de qualidade, saudável. As ações de apoio devem incluir apoio psicológico, pedagógico. Infelizmente, o recurso disponível é pequeno para tudo o que deveria ser feito para apoiar os estudantes", disse Ros.