Em tempos de pandemia, o futebol tem se ajustado com as mudanças necessárias
Quando o presidente do Atlético-MG, Sérgio Sette Câmara, soube que o técnico Jorge Sampaoli pedia a contratação de Thiago Neves, parte da diretoria foi contra. À exceção do argentino, só o executivo de futebol Alexandre Mattos apoiou a iniciativa.
O mandatário depois diria que se arrependeu por não ter freado a contratação do meia que, quando jogava no Cruzeiro, mais de uma vez ironizou o Atlético nas redes sociais, além de prometer jamais vestir a camisa alvinegra.
A revolta de torcedores, especialmente nas redes sociais, foi tão grande que fez o cartola recuar. Tornou-se mais um exemplo de como protestos virtuais podem moldar a política de um clube de futebol.
Não por acaso, Sette Câmara foi ao Twitter logo depois para debelar o que poderia ser mais um foco de protestos.
"O Atlético do futuro precisa de pilares sólidos que estão além das quatro linhas. Comissão e departamento de futebol têm independência para avaliar e indicar, mas a palavra final é minha. Não vai vir também", escreveu.
Ele se referia à recusa em fazer proposta pelo meia-atacante colombiano Sebastián Villa, do Boca Juniors, indicado por Sampaoli. O atleta é acusado na Argentina de agredir a namorada.
"O balanço do poder entre dirigente e torcedor, que antes era favorável ao dirigente, passou para o torcedor digital. A capacidade de engajamento só faz crescer a pressão sobre o clube", avalia José Colagrossi, diretor-executivo do Ibope Repucom, especializada em marketing esportivo.
Embora os casos do Atlético-MG estejam em evidência, ele cita que desde 2012 é possível notar uma tendência de campanhas iniciadas por torcedores influenciarem os destinos de uma equipe.
"O primeiro caso aconteceu em 2012, quando o Palmeiras fez vaquinha virtual para contratar o meia Wesley", diz.
A capacidade de Germán Cano de marcar gols foi identificada pela torcida do Vasco, que fez várias postagens pedindo pelo atacante quando ele ainda estava no Atlético Nacional (COL), em 2019.
Neste ano, fãs do Botafogo inundaram as redes sociais do meia japonês Honda e do atacante marfinense Kalou, pedindo que eles jogassem pelo clube –deu certo.
Torcedores do Ceará fizeram a diretoria desistir do goleiro Jean, ex-São Paulo e hoje no Atlético-GO, que no ano passado foi detido nos EUA acusado de agredir a esposa.
Condenado pelo homicídio de Eliza Samúdio, o goleiro Bruno viu times desistirem de sua contratação desde que passou ao regime semiaberto, em 2019. Hoje ele defende o Rio Branco, do Acre.
Ao ver a necessidade de um meia no elenco, santistas pediram no Twitter para que a diretoria contratasse o costarriquenho Bryan Ruiz, em 2018. A aquisição foi um fiasco. Ele quase não jogou até rescindir o acordo, há dois meses.
"As redes sociais são termômetro para algumas coisas, mas não podem ser o único medidor de opiniões. Têm de ser levadas em conta para aferir opinião, mas não para decidir. Até porque a maior parte dos torcedores que está nas redes sociais é silenciosa, só observa", diz Guilherme Bellintani, presidente do Bahia.
A reclamação pode até não vir da maioria, mas ainda assim incomodar. Torcedores do Goiás fizeram barulho suficiente nas redes do clube para convencer o mandatário Marcelo Almeida a desistir de contratar o técnico Alberto Valentim no mês passado.
"O torcedor tem de ser ouvido, não é possível ignorar o que ele pensa", diz Almeida.
É uma relação que pode incomodar até mesmo times que são corporações internacionais. Dirigentes do Manchester United acreditam que as críticas nas redes sobre a falta de contratações para a nova temporada criaram um clima ruim entre os jogadores.
Mas o mesmo clube comemorou quando viu que o nome de Ighalo, seu atacante nigeriano, era o mais citado no Twitter no dia de sua aquisição. Isso seria usado para captar novos patrocinadores.
"É uma relação de aprendizado no futebol. O clube é uma marca e precisa se preocupar cada vez mais com seu consumidor, o torcedor. Ele quer estar bem com a torcida, e ela começou a perceber que, ao fazer pressão, pode ganhar o braço de ferro com a diretoria", analisa Ivan Martinho, professor de marketing esportivo da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
O elogio também pode ser instantâneo, como a reação de fãs do Fortaleza com a defesa que o presidente Marcelo Paz fez da imagem da equipe diante das especulações de que o treinador Rogério Ceni poderia ir para o Corinthians.
"O torcedor percebeu que tratavam o Rogério como se ele estivesse desempregado, como se o Fortaleza não existisse", afirma Paz.
O desafio é como lidar com isso. Até que ponto vale ouvir o que a torcida tem a dizer e fazer o que ela pede? E se der errado, como foi o caso de Bryan Ruiz no Santos?
"O clube deve ser observador. A melhor coisa é não querer bloquear nem ditar a conversa. As redes sociais viraram uma forma de o torcedor se informar sobre o que acontece no time", diz Bruno Maia, sócio da agência 14, de marketing e conteúdo.
O consenso entre dirigentes e especialistas é que a relação mudou. A quantidade de torcedores dispostos a protestar era pequena, e o mais comum eram pichações de muros ou atos na porta dos estádios. Agora eles têm uma arma mais poderosa: o celular.
"O clube precisa entender o que o torcedor sente. Tem de se comunicar com ele sendo transparente, explicando as decisões, mesmo que sejam contrárias ao que a torcida quer. Até porque o patrocinador pode ver os protestos e achar que sua marca está sendo associada a uma mídia negativa", diz Colagrossi.