Equipamento público, construído por R$ 600 milhões, foi cedido sem concorrência para festa privada, com ingressos de até R$ 1 mil. Organizadores pagaram aluguel de apenas 25 mil.
A Cidade das Artes, inicialmente Cidade da Musica, é um dos melhores equipamentos culturais do país. Suas obras tiveram início em 26 de dezembro de 2002, com o objetivo de ser o principal polo de cultura do Rio e sede da Orquestra Sinfônica Brasileira. A construção estava orçada inicialmente em R$ 80 milhões, mas, em 2012, o site G1 informava que a conta já tinha ultrapassado os 600 milhões de reais. Exatamente isso, mais de meio bilhão de reais. As despesas foram consideradas "farra com o dinheiro público" por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aberta pela Câmara Municipal dos Vereadores em 2009. O relatório da CPI apontou indícios de fraudes em licitações e superfaturamento de preços nas obras.
Em respeito a este investimento bilionário, realizado com dinheiro público, que é preciso estabelecer critérios rigorosos na sua utilização. Na gestão passada, a Secretaria Municipal de Cultura abriu edital de licitação, no qual pagaria R$ 48,4 milhões à Organização Social (OS) que gerisse por dois anos o equipamento, que possui uma área total de 94 mil metros quadrados. Este edital foi feito na gestão de Emilio Kalil como secretário de Cultura. Depois, curiosamente, ele acabou sendo o próprio gestor da Cidade das Artes até ser substituído por André Marini, ex-Rio Eventos, que acumula também o cargo de Subsecretário de Cultura da gestão de Marcelo Crivella.
A exemplo da gestão anterior, a pauta e cessão do equipamento não obedecem a um critério democrático, permitindo a produtores se habilitarem para o uso. No último dia 05, a Cidade das Artes foi cedida para a realização de uma festa de música house, a P12. Um evento privado de musica eletrônica, que utilizou toda a parte externa térrea do local e recebeu mais de 3,5 mil pessoas. Segundo um dos organizadores, para uma maratona em três pistas, com uma dúzia de Djs, começando às 15 horas e indo até às 5h da manhã. Foram instalados camarotes sob palafitas tubulares ocupando todo o espelho de água, com ingressos comercializados a 1 mil reais por pessoa. O valor do ingresso mais simples custava, no dia, entre 200 e 360 reais. A produção foi da Ruy & Thomas Eventos, com o nome fantasia de Connect Produções e Eventos. Ela possui capital social de R$ 20 mil que, por coincidência, é um valor próximo ao que foi pago de aluguel pelo espaço, além de uma taxa de 20% do valor para cada dia de montagem e desmontagem, totalizando R$ 25 mil, segundo a própria Cidade das Artes. Esse valor foi publicado em tabela no Diário Oficial do Município.
Uma festa privada, que obtém grande parte da receita de bar com a venda de bebida alcoólica e energética, além do intenso consumo de água mineral, uma das características destas baladas. No dia 29 de julho, uma semana antes, em Barcelona (ESP), durante o festival Tomorrowland Unite, houve um incêndio no telão, que transmitia ao vivo o evento, devido a um superaquecimento do material usado no palco. Os bombeiros tiveram que evacuar 22 mil pessoas do local. O evento na Cidade das Artes foi montado no próprio dia, em uma verdadeira maratona de cabos e andaimes. Se houvesse uma reedição do problema de Barcelona, teria como uma empresa de capital social de R$ 20 mil ressarcir um prejuízo de um equipamento público que custou R$ 600 milhões?
A nossa reportagem solicitou uma cópia da apólice de seguro à assessoria de Comunicação da Secretaria de Cultura, que até o fechamento da edição não havia sido enviada. O produtor associado do evento Kryssian Lauria, da KL Produções e Eventos, afirmou ao Jornal da Barra que o evento estava assegurado por uma apólice da Chubb Seguros, no valor de R$ 1,2 milhões. Ele afirmou também que foram emitidas todas as RTs necessárias para a montagem e que o capital social não é fator limitante para indenização. O alvará transitório, em nome da Microempresa Ruy & Thomas Eventos, foi expedido somente na véspera do evento, no dia 04, de número 032129. Para que isso ocorresse, seria necessária autorização previa dos Bombeiros. Só que o licenciamento da própria Cidade das Artes junto aos bombeiros ainda esta pendurada em um protocolo. O evento estava sendo vendido há semanas no site "Ingresso.com" e nas redes sociais sem que tivessem um alvará, que só foi concedido no dia anterior.
O grupamento dos Bombeiros da Barra se recusou a liberar a licença prévia, por ser um evento superior 900 pessoas. Como a montagem ocorreu poucas horas da abertura, em ritmo frenético no mesmo dia, quem fiscalizou a montagem e a instalação do equipamento de luz e som das três pistas? Não se pode descartar o risco que o equipamento sofreu e a exposição a qual o prédio bilionário foi exposto em troca de um aluguel, quase simbólico, de R$ 25 mil. O baixo valor de receita aos cofres públicos, comparado ao alto risco e stress da estrutura que foi submetido, merece uma reflexão. Para Lauria, o "tempo que tivemos foi suficiente e abrimos no horário combinado. Fazemos anualmente dezenas de eventos e não tivemos nenhuma reclamação para montagem".
Os R$ 600 milhões gastos pela Prefeitura foram para isso? Abrigar uma festa rave com ingressos vendidos por até 1 mil reais, com milhares de jovens pulando sem segurança, inclusive nas palafitas transformadas em camarote? E os vizinhos? Alguém se preocupou com os dois hospitais (uma maternidade e um pronto socorro) que ficam a menos de 500 metros da Cidade das Artes ou os condomínios em volta? O complexo foi pensado para espetáculos indoor, nos seus auditórios, que possuem isolamento acústico e permitem grandes espetáculos. Utilizar a parte térrea, avançando sobre o paisagismo, instalado dezenas de banheiros químicos e impactando o entorno é desvirtuar o projeto original do equipamento.
Além disso, a falta de segurança permitiu que uma quadrilha agisse, pois foram registrados diversos furtos de celulares. O comum teria sido reeditar o mesmo controle de entrada na saída. Em um evento recente, foram recuperados dezenas de celulares. Só um ladrão deixara a balada com oito celulares. Apesar do alerta no dia da P12, nada foi feito. "Impossível fiscalizar na saída, causaria muito tumulto. Não recebi nenhuma noticia de furto de celular. Naquela noite, achamos quatro aparelhos que foram devolvidos ao dono e uma bolsa de uma moça, que confessou que estava em estado alterado quando perdeu. Isso ninguém fala. Tivemos uma equipe de 80 seguranças (oito eram policiais), 20 a mais do que precisávamos. Tivemos também um posto médico com uma equipe de 12 pessoas e seis brigadistas.", afima Lauria.
A atual gestão da Cidade das Artes tem lutado com a falta de apoio financeiro da administração municipal e procurado democratizar o espaço, tentando gerar recursos. A programação tem sido esforçada e guarda características bem diferentes da gestão anterior. No caso da P12, eles erraram a mão. Esta transformação do bilionário equipamento em um parque de diversão da musica eletrônica, com super lotação, equipamentos montados de forma açorda e uma balada movida com venda de grande quantidade bebida alcoólica, desvirtua um equipamento que nasceu para ser o templo da cultura e das artes.
Na própria Barra existem diversos espaços privados para que abrigar uma festa como esta. A própria P12 volta para o réveillon em uma grande festa de final de ano no Grand Mercure Riocentro. Aplausos! Uma festa certa no lugar certo. No caso da do último dia 05, foi a festa certa no lugar errado. Não é correto tratar o uso dos espaços públicos misturados aos interesses privados. Uma festa como esta produz uma enorme receita e não é justo que um investimento público subsidie uma balada privada. É preciso repensar o papel da Cidade das Artes.
Se o objetivo é transformá-la em um centro de eventos, que a sua gestão seja entregue a Rio Eventos que, junto com a Riotur, já possui no próprio equipamento. Para a hotelaria da Barra, que amarga uma baixa ocupação, ter o espaço transformado em palco de grandes eventos e congressos pode ser uma solução. A própria P12 foi realizada sem entrar para o calendário. Nem a Riotur sabia da sua existência. Foi uma festa sem beneficiar o turismo. O papel da sociedade civil organizada e da imprensa é fiscalizar e evitar que novos abusos ocorram. Não se pode utilizar um equipamento público para atender interesses meramente privados, com licenças concedidas de forma discutível, sem nenhuma contribuição cultural e que deixe apenas algumas “migalhas” nos cofres públicos.