Entre 900 mil e 1,4 milhão de unidades do fármaco podem vencer até junho de 2021 se não forem consumidos
Apenas 317,5 mil (8%) dos quase 4 milhões de tubetes de insulina de ação rápida adquiridos em 2018 pelo governo federal chegaram às mãos de pacientes com diabetes tipo 1. Cerca de 396 mil pessoas poderiam ser beneficiadas, no entanto, apenas 11% receberam o remédio até setembro deste ano.
Não para por aí. Entre 900 mil e 1,4 milhão de unidades do fármaco podem vencer até junho de 2021 se não forem consumidos. As informações são da ADJ (Associação de Diabetes Juvenil) obtidas via Lei de Acesso à Informação.
O Ministério da Saúde investiu R$ 50,2 milhões na compra de 3.959.455 unidades do medicamento da Novo Nordisk Farmacêutica. Cada unidade custou exatos R$12,70. Na prática, isso quer dizer que, caso as insulinas vençam, o governo federal terá jogado fora pelo menos R$11,4 milhões, perda que, no pior cenário, pode chegar a R$17,7 milhões. Atualmente, o ministério tem 1.694.085 de doses estocadas que não foram enviadas às secretarias estaduais e municipais.
Procurado no dia 11 de setembro, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da Folha. De acordo com funcionários da ADJ, o ministério estuda se reunir com membros da associação na terça-feira, 22 de setembro.
Karla Melo, coordenadora de saúde pública da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), afirma que o desperdício se deve especialmente ao excesso de burocracia para que o paciente tenha acesso ao medicamento.
Para receber as doses de insulina análoga de ação rápida, o paciente precisa ser atendido por um endocrinologista que deverá preencher um relatório que leva, em média, 45 minutos para ser finalizado. Porém, segundo a ADJ, as consultas no SUS (Sistema Único de Saúde) duram cerca de 15 minutos na maior parte dos casos.
O relatório é de preenchimento complexo e qualquer erro em informações acarretará na necessidade de um novo preenchimento e mais 45 minutos, além de idas e vindas entre a UBS (Unidade Básica de Saúde) e a Farmácia de Alto Custo, único lugar onde os pacientes podem retirar o remédio.
O SUS oferece, atualmente, dois tipos de insulina. Um deles, a mais comum (ou regular) e que pode ser retirada pelos pacientes nas unidades básicas de saúde, leva cerca de 1h30 para fazer efeito. Já a insulina análoga de ação rápida, que foi incorporada ao SUS em 2017, demora apenas 15 minutos para agir.
A cirurgia dentista Thaís Cachuté Paradella, 40, lida com a diabetes tipo 1 desde os quatro anos de idade. A possibilidade de ter acesso a um medicamento de ação mais rápida e prática (por meio de caneta de aplicação e não de agulhas e seringas) a fez buscar o SUS em 2014.
Na ocasião, como a insulina de ação rápida ainda não havia sido incorporada pelo sistema de saúde, o paciente que quisesse utilizar o fármaco precisaria fazer um pedido a secretaria de saúde do seu município comprovando que não poderia arcar com os custos do produto. Foi o que Thais fez.
A Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Campos negou o pedido sob justificativa, segundo Thais, de que a cirurgiã dispunha de condições financeiras de adquirir o produto.
"Mesmo eu entregando a papelada o meu direito foi negado. A insulina, agora, está aí, parada no ministério, pronta para ser jogada fora. É um absurdo", diz.
Para Karla Melo, o problema poderia ser resolvido de forma mais rápida oferecendo a insulina de ação rápida nas unidades básicas de saúde, facilitando, assim, o acesso ao medicamento por meio de uma receita simples, sem a necessidade do preenchimento de longos relatórios e formulários.
A obtenção do medicamento requer uma permissão, chamada de Laudo de Medicamento Especial (LME). O laudo é requerido pelo endocrinologista e tem prazo de seis meses –antes o prazo era de três meses, mas após diálogo e muita campanha da ADJ, o Ministério da Saúde expandiu o vencimento.
"Queremos reduzir a burocracia porque o custo da insulina é baixo, não é um remédio que precise de tantos protocolos. É um remédio fácil de ser usado. Nosso pleito é conseguir colocá-lo sem burocracia nas unidades básicas de saúde. O LME, por exemplo, deveria ser no mínimo anual", afirma Melo.
Para a cirurgiã dentista, o governo federal tem dificuldade de lidar com doenças crônicas. Ela aponta que sendo a diabetes tipo 1 crônica, não deveria requerer o LME, bastante apenas a receita médica para a obtenção do medicamento.
Diabetes tipo 1 aumenta risco de morte por coronavírus Não bastasse lidar com uma doença crônica, os pacientes com diabetes tipo 1 também correm risco de apresentar a forma mais grave da Covid-19. Um estudo realizado pelo NHS (Serviço Nacional de Saúde) do Reino Unido em maio indica que aqueles que têm diabetes tipo 1 tem mais chances de morrer por causa do novo coronavírus do que os pacientes com diabetes tipo 2.
Além disso, uma em cada três mortes de pessoas hospitalizadas no Reino Unido por causa da Covid-19 foram de pessoas com diabetes tipo 1.
Em comparação com pessoas que não são diabéticas, os pacientes do tipo 1 tem 3,5 vezes mais chance de morrer em decorrência do novo coronavírus.
Segundo Karla Melo, a ausência da insulina de ação rápida pode dificultar o controle da doença pelos pacientes, isso porque dispondo apenas da insulina regular as chances de cometerem erros de aplicação aumenta. "O diabetes mal controlado é um fator de risco importante para a forma mais grave da Covid-19", diz.