Por ser um relato, e não um estudo científico, o anúncio consiste em um único paciente observado durante os meses de março a maio deste ano
Após a descoberta que o Sars-CoV-2 pode invadir e até mesmo atacar células do cérebro humano, um novo relato indica um possível efeito dessa invasão: a doença de Parkinson.
O caso foi registrado em carta enviada para publicação na revista The Lancet por pesquisadores do Centro Médico Shaare Zedek e da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel.
Por ser um relato, e não um estudo científico, o anúncio consiste em um único paciente observado durante os meses de março a maio deste ano. Os autores dizem não ser possível afirmar com certeza que o Sars-CoV-2 levou à doença, mas relatos de outros vírus causando Parkinson, como influenza A, Epstein-Barr, varicela-zóster, hepatite C e até o vírus do Nilo ocidental são conhecidos na literatura médica.
O paciente, um homem de 45 anos, se apresentou no dia 17 de março ao Hospital Universitário Samson Assuta Ashdod com sintomas de tosse seca e dor muscular que haviam iniciado há seis dias, dois dias após ter voltado ao país de uma viagem aos Estados Unidos. Ele relatou que durante o voo de volta havia uma pessoa com tosse intensa sentada próxima a ele.
Alguns dias depois, o mesmo disse apresentar perda de olfato.
Após o resultado positivo no exame RT-PCR, o homem permaneceu internado em uma ala exclusiva para Covid-19. Nos dias 25 e 30 de março, dois novos testes de RT-PCR deram resultado negativo e ele recebeu alta, e foi aí que passou a reportar os sintomas característicos de Parkinson.
Primeiro, ele descreveu dificuldades em escrever mensagens de texto e na fala, bem como episódios de tremor na mão direita. Em casa, ele continuou a apresentar tais sintomas e seguiu então para o departamento de neurologia do Centro Médico Shaare Zedek cerca de dois meses após receber o diagnóstico de Covid-19.
A avaliação médica constatou dificuldade de fala, rigidez no pescoço e no braço direito e esquerdo. Os exames de imagem de tomografia no cérebro, de sangue e sorológicos mostraram índices normais de sangue e células de defesa do organismo, e não foi encontrada nenhuma alteração significativa na imagem.
Um novo exame de PET Scan confirmou o quadro de Parkinson devido à alteração em neurônios dopaminérgicos, responsáveis pela produção de dopamina.
A doença de Parkinson está relacionada com a degeneração de células da base do chamado sistema dopaminérgico, associado às funções motora e cognitiva. Segundo Augusto Penalva, neurologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, era uma questão de tempo de casos de parkinson relacionados à Covid surgirem.
"Não é bem a doença de Parkinson, mas o que chamamos de parkisonismo, que é a sintomatologia de Parkinson dentro de um contexto de doença infecciosa, o que é bastante conhecido em muitas circunstâncias. Na própria Aids algumas manifestações neurológicas do HIV, como a lentidão cognitiva e motora, são associadas ao parkinsonismo."
Ele explica que o Sars-CoV-2 não possui uma especificidade celular muito particular, podendo invadir qualquer célula contendo a molécula ECA2 (enzima conversora de angiotensina 2) como porta de entrada, o que favorece o comprometimento não só de um, mas de diversos tipos de células do sistema nervoso central.
"Em uma ampliação da infecção, com mais de 30 milhões de casos de Covid-19 no mundo, é evidente que isso se manifestaria porque ele [o vírus] não tem especificidade celular tão grande."
Penalva é também coordenador de um estudo nacional sobre manifestações neurológicas da Covid-19, o neurocovbr. O médico explica que já foram relatados dois casos de parkisonismo associado à Covid no país, e um dos relatos já foi publicado.
"Não publicamos todas as manifestações porque a literatura já está saturada de casos isolados. Estamos agora trabalhando com coortes para avaliar os efeitos e mecanismos da manifestação neurológica tardia do Sars-CoV-2."
Um desses efeitos é a compartimentalização do vírus no cérebro muito tempo depois de não ter mais vírus detectável no sistema respiratório. O neurologista conta um caso de uma paciente em que foi possível isolar o vírus Sars-CoV-2 do liquor três meses após o fim da manifestação respiratória.
"Estamos agora estudando quais as consequências disso porque o vírus pode não manifestar esse efeito destruidor primário, mas pode alterar a homeostase, e não sabemos o que isso pode provocar. Outro ponto é a aparente baixa inflamação que ele causa no cérebro, sem gerar uma resposta imune. Então o que ele pode fazer e alterar nessas células ainda estamos buscando entender."
É possível, diz, que devido à invasão do vírus no cérebro muito tempo depois de não ser mais detectável nas vias respiratórias, a quantidade de pessoas que de fato contraiu a doença seja muito maior, pois não há ainda comprovação de uma presença de anticorpos para o Sars-CoV-2 neste órgão, ao contrário dos pulmões e coração.
"Quando você pensa em uma questão da infecção precisa pensar muito além da infecção aguda. A persistência desse vírus no organismo pode eventualmente modificar o sistema e se adaptar ali até."
O estudo nacional neurocovbr recebe apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e é realizado em São Paulo, no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Hospital Albert Einstein e Santa Casa, em Brasília, no hospital universitário da UNB e Hospital Sírio-Libanês de Brasília e em Fortaleza, no Hospital Geral de Fortaleza.