Flávia Faria e Diana Yukari (Folhapress)
Diferentemente do restante do mundo, que vê a disseminação do coronavírus desacelerar, a América do Sul passa por uma explosão de casos de Covid-19 e é há meses o epicentro da pandemia.
Mesmo com o já conhecido problema de baixa testagem –ou seja, os dados provavelmente estão subestimados –o continente sul-americano tem hoje uma média de 328 novos casos diários a cada milhão de habitantes. O número é mais de cinco vezes o da Europa, com média móvel de 60 novos diagnósticos no domingo (6).
Nas últimas seis semanas, a Organização Mundial da Saúde vem registrando queda global no número de casos, mas na América do Sul o movimento ainda é de crescimento. A tendência é semelhante se analisado o volume de óbitos pelo vírus.
O Brasil contribui para a situação negativa do continente, por estar estagnado num patamar alto novos casos, de 292 contaminados por milhão de pessoas (387% mais que Europa e 563% mais que EUA).
Para epidemiologistas, uma combinação de fatores explica o quadro sul-americano. A variante de Manaus, detectada no fim do ano passado, encontrou países com grande população pobre, com déficit de infraestrutura em saúde, moradia e assistência social, com dificuldade para se tratar e fazer isolamento social. Além disso, a região está com dificuldades em adquirir vacinas.
Na Europa, a tendência é de queda acentuada de casos desde abril, enquanto na América do Sul os números vêm crescendo desde fevereiro, com breves episódios de diminuição. Mesmo a Índia, que passou por situação de calamidade no início do mês passado, parece ter conseguido amenizar a disparada da Covid (média móvel de 89 no domingo, contra 283 em 9 de maio). Especialistas ressaltam, contudo, que o país tem falhas graves no sistema de vigilância epidemiológica e que os dados devem ser analisados com ressalvas -mesmo problema enfrentado pelas nações da África. Na Oceania, onde a pandemia foi bem controlada desde o princípio, há 3 novos casos a cada milhão de pessoas.
Para efeito de comparação, o Reino Unido, que em janeiro viveu seu momento mais dramático na pandemia, chegou a uma média diária de 881 casos a cada milhão de britânicos (hoje, são 69 por milhão). Nos EUA, o pico, também no início do ano, foi de 742 a cada milhão, ante 44 agora.
Hoje, a média de casos no Uruguai é de quase 1.000 a cada 1 milhão de pessoas. Na Argentina, o índice é de 638 por milhão, mas o país tem sido criticado pelo baixo nível de testagem –é possível que o número real de infectados seja maior.
O Brasil, por sua vez, teve pico em março (364 novos casos por milhão) e hoje registra média de 292 a cada milhão de brasileiros. Por aqui também há falta de testes e política insuficiente de rastreamento de contágio e testagem em massa, tidos como fatores importantes no combate à Covid.
A América do Sul também é atualmente campeã em novas mortes pela doença. Com percentuais ainda baixos de vacinação e problemas estruturais que dificultam o enfrentamento ao coronavírus, o continente passa por seu pior período na pandemia.
No Brasil, há queda de óbitos, mas o patamar ainda é alto. A média atual é de 8 mortes por milhão de habitantes, 48% mais que o pico de 2020. Já Uruguai, Paraguai, Argentina e Colômbia vivem um momento de escalada de mortes e ocupam o topo do ranking mundial, quando considerados os países com mais de 3 milhões de habitantes.
As taxas ficam entre 17 e 11 a cada milhão, enquanto a média da América do Sul é de 8 novas mortes por milhão. Epidemiologista e pesquisador da Fiocruz, Diego Xavier diz que a pandemia cobrou a conta da precariedade dos serviços públicos não só na saúde, mas no transporte, na habitação e na assistência aos mais pobres –características comuns aos países sul-americanos.
A desigualdade e a pobreza, afirma, impedem que muitas pessoas possam cumprir adequadamente as medidas de isolamento social, sendo obrigadas a se arriscar e sair para trabalhar. Muitos países também não têm condições econômicas de fornecer por períodos prolongados auxílio para que os trabalhadores fiquem em casa, como aconteceu em parte da Europa. O transporte público lotado e as moradias precárias facilitam o contágio e tornam difícil o isolamento de doentes.
"Em todos os locais em que há déficit de serviço público, a doença se aproveita e persiste. Como podemos isolar um doente que mora na favela, por exemplo? Não tem como. Todas essas desigualdades históricas e estruturais na América do Sul explicam esse quadro triste", diz Xavier.
Outro ponto importante no cenário atual são as variantes de preocupação, caso da P.1, conhecida como variante de Manaus e mais transmissível. Estudo no Uruguai detectou a variante em 89% das amostras analisadas. Ela também já foi identificada na Argentina, Peru, Paraguai e Colômbia. É difícil saber ao certo a extensão do contágio pela P.1, contudo. O sequenciamento das amostras não é uma prática muito comum nos países sul-americanos.
"O Brasil é um local de criação de variantes. A gente tem a doença descontrolada e existe grande possibilidade de exportação de variantes. No meio dessa confusão toda, resolveram fazer uma Copa América. É falta de bom senso", diz Xavier, em referência à decisão do governo brasileiro de atender o pedido da Conmebol e sediar o torneio, após desistência da Argentina e da Colômbia em razão do agravamento da pandemia.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o doutor em epidemiologia Paulo Petry afirma que a P.1 pode ser em parte responsável pela escalada da doença nos países vizinhos. Ele alerta que falta controle mais intenso das fronteiras e testagem massiva de quem circula na região.
Embora os voos e o turismo internacional estejam suspensos na maioria dos países, as fronteiras comerciais permanecem abertas. Além disso, a entrada de residentes vindos do exterior é permitida, muitas vezes sem exigência de quarentena e sem testagem adequada.
"É preciso reconhecer que é muito difícil estabelecer barreiras sanitárias, mas a coisa saiu de controle. Aqui no Rio Grande do Sul temos, nas fronteiras terrestres com Uruguai e Argentina, passagem intensa de caminhões. Essas pessoas deveriam estar sendo testadas frequentemente. Existe uma questão comercial, mas na América do Sul em geral nós nunca fizemos bloqueio de circulação como fizeram na Europa, com grande rigor. Sempre foi mais ou menos", diz Petry.
Os pesquisadores também chamam atenção para a lentidão com que a campanha de vacinação tem caminhado na América do Sul, onde os imunizantes ainda são escassos. Há duas exceções: Chile e Uruguai. No primeiro, que largou bem à frente do Brasil na corrida por vacinas, 60% da população já recebeu ao menos uma dose, e foi possível frear a disparada de mortes que se observou nos países vizinhos –a vacina é bastante eficaz contra óbitos e internações, mas não previne o contágio com a mesma eficiência.
Em fevereiro, houve afrouxamento de medidas de isolamento social, e os casos bateram recordes históricos em abril. O número de mortes, contudo, está razoavelmente estável e em patamar muito menor do que no pico da pandemia (média de 6 mortos por milhão agora, ante 13 em junho de 2020).
Já o Uruguai ainda não conseguiu colher os frutos da imunização. Apesar de ter distribuído a primeira dose a 58% dos cidadãos, a campanha só começou em março e não priorizou inicialmente os idosos, grupo de risco para a Covid e parcela representativa da população.
Espera-se, porém, que a vacinação em breve ajude a reduzir o número atual de mortes, cenário ainda distante para os demais países sul-americanos. Brasil e Argentina, por exemplo, aplicaram a primeira dose em menos de um quarto de seus habitantes. No Peru, no Equador e na Bolívia, a vacinação não conseguiu atingir nem 15% dos cidadãos.
"Ninguém queria nem esperava que a pandemia durasse tanto tempo, mas já que está aí temos que tomar medidas mais efetivas e bloquear a circulação do vírus enquanto esperamos mais vacinas", afirma Petry.