Ana Luiza Albuquerque (Folhapress)
Os cinco policiais acusados de matar 13 pessoas durante operação na favela de Nova Brasília, no Rio de Janeiro, em 1994, foram absolvidos pelo Tribunal do Júri nesta terça-feira (17).
O júri, composto por sete pessoas, reconheceu a existência do crime, mas não a autoria dos réus. O próprio Ministério Público do Rio de Janeiro, que denunciou os acusados por homicídio qualificado em 2013, 19 anos após os fatos, pediu a absolvição dos policiais por falta de provas.
Se tivessem sido condenados, Rubens de Souza Bretas, José Luiz Silva dos Santos, Carlos Coelho de Macedo, Paulo Roberto Wilson da Silva e Ricardo Gonçalves Martins poderiam ter sido sentenciados a cumprir de 12 a 30 anos de prisão por cada uma das 13 mortes.
Antes de ler a sentença do júri, a magistrada Simone de Faria Ferraz, que presidiu a sessão, afirmou que "é tempo de lembrar 13 mortos deitados em solo, em praça pública, amontoados como resto, como que avisos claros de demonstração de força".
"Fato é que ecoam ainda pelas vielas da cidade, longe dos refletores do asfalto, o silêncio assombrado, a realidade, a infeliz realidade: o Estado que não julga, o Estado policialesco, o Estado de Força, o Estado de Armas", disse a juíza.
O episódio de Nova Brasília é um dos exemplos mais simbólicos da inércia da Polícia Civil, do Ministério Público e da Justiça para investigar e, eventualmente, acusar e punir policiais envolvidos em operações com mortes. Por não ter apurado o caso com eficiência, o Brasil chegou a ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2017.
Na manhã de 18 de outubro de 1994, um grupo de 40 a 80 policiais civis e militares matou 13 pessoas em uma incursão na comunidade, sendo quatro adolescentes. Nova Brasília é uma das 15 favelas que integram o Complexo do Alemão, na zona norte.
Os exames cadavéricos mostram tiros de curta distância. Um jovem tinha dois ferimentos a bala -um em cada olho. Uma sindicância do governo concluiu que existiam fortes indícios de que pelo menos alguns dos homens haviam sido assassinados sem apresentar resistência.
Segundo noticiado à época, policiais invadiram pelo menos cinco casas, dispararam contra quem estava lá, e levaram os corpos à praça principal da comunidade. Três agentes também torturaram e estupraram três mulheres, entre elas duas adolescentes, segundo depoimento das vítimas.
Duas dessas mulheres participaram do júri como testemunhas da acusação na segunda-feira (16). Uma delas reconheceu um dos policiais, 27 anos depois do ocorrido, após a magistrada que presidiu a sessão ter autorizado um pedido de reconhecimento feito pelo Ministério Público.
Ela também afirmou que acordou no dia da operação com o barulho de tiros e helicópteros de madrugada. Narrou que a casa onde estava, de uma amiga, foi invadida por policiais que atiraram contra um morador, que conseguiu fugir.
De acordo com a testemunha, os policiais então passaram a agredir as três pessoas que estavam na casa com pedaços de madeira que quebraram de uma cama, além de abusar sexualmente das duas mulheres que estavam no local. O processo pelos crimes de estupro e atentado violento ao pudor tramita em segredo de justiça na 35ª Vara Criminal.
A mulher disse, ainda, ter visto vestígios de sangue e massa encefálica na comunidade após a operação.
Em maio de 1995, pouco mais de seis meses após a primeira incursão, policiais entraram novamente na comunidade e mataram mais 13 pessoas, entre elas dois adolescentes.
As investigações das duas operações ficaram paradas por anos e foram arquivadas pelo Ministério Público em 2009, sob a alegação de prescrição.
Só após uma notificação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2013, o órgão solicitou o desarquivamento do inquérito e apresentou denúncia contra os suspeitos. A investigação da operação de 1995, no entanto, não resultou em ação penal.
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu uma sentença contra o Estado brasileiro pela violação das garantias de independência, imparcialidade e diligência das investigações.
Procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro à época da primeira operação, Antônio Carlos Biscaia deixou o cargo em fevereiro de 1995. Ele diz que pouco tempo após a incursão de 1994 já existiam elementos suficientes para dar início à ação penal.
"A denúncia poderia ter sido oferecida, não digo de imediato, mas em 1995 com certeza. Por que não foi, eu não sei", afirma.
Reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que, entre 2015 e 2019, apenas 2,5% das investigações que tramitaram no extinto Gaesp (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública) a respeito de mortes por intervenção policial resultaram em denúncia pelo crime de homicídio.
Além de retratar a impunidade policial, o caso de Nova Brasília guarda semelhanças de procedimento com operações realizadas nas décadas posteriores -seja no complexo da Maré, no Jacarezinho ou no Fallet, entre tantas outras que resultaram em um elevado número de mortes.
Uma delas é a remoção dos corpos de pessoas mortas, prática que contraria determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) que busca preservar os vestígios das ocorrências nas operações.
Outra similaridade entre a operação de 1994 e as que vieram depois é a narrativa normalmente apresentada pela polícia de que as mortes ocorreram em confronto, quando testemunhas alegam que as vítimas já estavam rendidas.
Mais uma semelhança é a realização de operações violentas como represália a algum ataque do tráfico, como a morte de um policial. A incursão de 1994, por exemplo, ocorreu dois dias após a delegacia de Bonsucesso, bairro onde fica a favela, ter sido metralhada por traficantes, em um ato que deixou três policiais feridos.
À época, o delegado Maurílio Moreira, que comandou a invasão a Nova Brasília, admitiu que a operação teve caráter de represália. "Se nos derem flores, devolveremos flores. Se nos derem balas, devolveremos balas. É para que eles saibam que a instituição policial tem que ser respeitada", disse à imprensa.
"A chacina policial, o arquivamento pelo Ministério Público e a aceitação do Judiciário viraram um padrão que a gente conhece dos anos 1990 e 2000", afirma Pedro Strozenberg, ex-ouvidor da Defensoria Pública do Rio e membro do conselho deliberativo do Iser (Instituto de Estudos da Religião), organização que atuou no caso junto à Corte Interamericana.
Seguindo esse padrão, as mortes por intervenção policial no Rio de Janeiro mais do que triplicaram entre 1998, primeiro ano em que o índice passou a ser registrado, e 2020, subindo de 355 para 1.245.
A letalidade policial continuou a crescer mesmo após a sentença da Corte Interamericana de 2017, que determinou, entre outros pontos não cumpridos pelo Estado brasileiro, a elaboração de metas e políticas de redução da violência policial.
Diante do não seguimento da resolução, a Corte marcou para sexta-feira (20) uma audiência pública de supervisão de cumprimento da sentença para tratar das garantias de não repetição.
Entre elas, estão a publicação anual de um relatório oficial com dados sobre mortes ocasionadas durante operações policiais em todo o país e a implementação de um programa obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os policiais militares e civis no Rio.
O não cumprimento da sentença não gera uma punição imediata para o país, segundo a advogada Helena Rocha, que atuou como consultora do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) na tramitação do caso de Nova Brasília na Corte. Ela afirma, no entanto, que a sentença funciona como um instrumento para pressionar por mudanças estruturais.