Francesca Angiolillo (Folhapress)

Quando foram anunciados vencedores do concurso para o primeiro Museu Marítimo do país, no Rio de Janeiro, os escritórios Messina Rivas e Ben-Avid Studio certamente não imaginavam que seu projeto conjunto se veria cercado não só pelas águas da Guanabara mas por um acalorado debate.

Foram 110 estudos preliminares concorrendo, um recorde para para chamadas públicas do IAB-RJ, seção fluminense do Instituto de Arquitetos do Brasil -que foi procurado pela Marinha para o certame, após a experiência bem-sucedida na convocatória para a Estação Antártica Comandante Ferraz, em 2013.

A localização do futuro museu explica parte do apelo: um terreno cercado de águas, em frente à Candelária, na orla retomada pelos cariocas após a demolição do elevado da Perimetral.

Foi também a localização que lançou a primeira âncora da controvérsia, um post no perfil Rio Antigo do Instagram, pouco após a divulgação, no dia 9, dos vencedores. A publicação, que dizia que a proposta vencedora era um "caixote" que ia contra esforços de liberar a vista da baía, teve mais de mil comentários.


Boa parte deles se indignava com a demolição do prédio de ar colonial erguido em 1996 para exposições do ECM -o Espaço Cultural da Marinha, cujas principais atrações são embarcações como o submarino-museu Riachuelo.

O tal edifício, ressalta a Marinha à reportagem, "não atende às necessidades de museu no que tange à conservação do acervo, fluxo, visitação, bem-estar do público, entre outras". O público não quis saber. De pouco valeu que, no post, seu autor, Daniel Sampaio -advogado fundador do Instituto Rio Antigo, que conta ser um amante da história desde a adolescência-, reiterasse que o prédio era um pastiche.

Para Igor de Vetyemy, presidente do IAB-RJ, o que levou quase todos os concorrentes a eliminarem a construção preexistente é que esse é o "gesto óbvio, a melhor maneira de aproveitar o espaço".

"Você não precisa imitar o passado para dialogar com o passado", afirma Vetyemy.

Chamou atenção ainda o tom bairrista que dominou as críticas da postagem, relacionando o resultado à origem paulista do desenho vencedor.
Rodrigo Messina, responsável técnico pelo projeto, é de São Paulo, mas se formou na PUC-RJ. Seu sócio, Francisco Rivas, é argentino, como Martin Benavidez, à frente do escritório parceiro deles no projeto.

Depois de chegar a sugerir um abaixo-assinado contra o concurso, Daniel Sampaio removeu sua postagem. "Fui muito passional. Não vou retirar o que disse, mas acho que o momento é de propor um debate construtivo."

Se a parte relativa ao prédio fake foi logo esquecida por observadores mais informados, o mesmo não se deu quanto às origens do projeto. Ainda que em outra nota. A reação de professores e arquitetos em redes sociais foi se organizando no sentido de dizer que havia, não só no vencedor, mas em vários projetos apresentados, uma influência incômoda da vertente da arquitetura moderna chamada de escola paulista.


Os dedos apontaram sobretudo para o representante mais louvado dessa corrente, Paulo Mendes da Rocha, morto em maio, aos 92 anos. À boca pequena, em grupos de WhatsApp, falou-se até mesmo em plágio do Cais das Artes, projeto inacabado do arquiteto em sua natal Vitória.

Falando à reportagem, Messina, Rivas e Benavidez explicitaram aspectos do projeto que não se desnudam só pelas imagens replicadas nas redes. Respondendo a um extenso programa proposto pela Marinha para o museu, conceberam dois edifícios interligados por uma passarela que remete à de embarque de um navio.

Perto da Candelária, um bloco envidraçado e uma praça fazem a acolhida, "como uma extensão da calçada", relacionando-se com a cidade "quase sem porta", diz Benavidez. No prédio, serviços de uso público, como livraria, auditório e café, que dispensam ingresso.

Passada a ponte, vem o museu de fato, um bloco que ocupa a extensão de 280 m x 17 m da Doca da Alfândega -um molhe de pedra, esse, sim, histórico e a ser preservado.
O edifício se assenta nele sobre pilares, deixando o térreo livre para ver a baía e chegar às embarcações visitáveis. O prédio conforma ainda uma área coberta para expor um tanque, um helicóptero e um avião do acervo do ECM.

O problema de "embarcar" no museu peças enormes se resolve com um elemento comum em portos, uma ponte-rolante, espécie de guindaste para içamento, que "atravessa todo o edifício e tem uma proposta logística e expográfica", diz Messina. Com isso, "você consegue, de repente, expor um barco flutuando no ar."

Nenhum desses aspectos foi analisado nos debates nas redes, que se concentraram em questões formais, como a janela inclinada voltada para o térreo, levando luz ao bloco fechado do museu, solução adotada antes no Cais das Artes.

"A gente usa uma série de referências, com certeza o Cais das Artes é uma delas", diz Messina. "Quando a gente projeta, há um diálogo com aqueles com quem a gente se formou", afirma Benavidez, que trabalhou com Mendes da Rocha em São Paulo.

Para Luiz Fernando Janot, professor da UFRJ e coordenador do concurso, "se apegar a um detalhe de janela inclinada é brincadeira". "Quantos projetos não têm a janela em fita do Palácio Capanema?"

Rodrigo Queiroz, professor de projeto da FAU-USP, postou no Facebook, justapostas, a imagem do projeto vencedor, ressaltando que ele fora escolhido entre 110 inscritos, e uma do Cais das Artes.

Para ele, todos os projetos premiados "ecoam uma solução projetual que marca a identidade da escola paulista". Mas, no caso do primeiro lugar, diz, isso raia o maneirismo, "que é quando a imagem soa quase como citação."

Isto posto, admite que concentrar o programa no píer, resultando numa forma linear que parece tão paulista, era mesmo muito tentador. "É muito difícil você se negar a ser o autor de um objeto de 280 m na baía de Guanabara."

Pedro Mendes da Rocha, filho de Paulo e arquiteto, participou do concurso e comentou na postagem de Queiroz que o projeto vencedor lhe parecia "muito bom". À reportagem, ele naturaliza as semelhanças.

"Confesso que me ocorreu fazer uma janela inclinada. Se a solução é boa, por que não repetir?". E recorda que o pai usou muito uma cobertura em grelha que ele mesmo chamava de "teto da FAU", por evocar os domos de Vilanova Artigas para na FAU-USP.

"Ele dizia que não precisava inventar nada a cada nova demanda", conta Pedro. "Você tem o privilégio de ter o passado, então vai olhar."