Por: Matheus Rocha e Mariana Moreira
As estradas que levam à Terra Prometida são tortuosas e têm capsulas de fuzil. São pelo menos sete delas em uma das vias. Ao chegar ao topo do morro, é possível encontrar uma casa crivada de tiros.
Os disparos atravessaram uma caixa d'água, perfuraram a parede de madeira e atingiram uma pequena geladeira. A porta do eletrodoméstico está perfurada e, em frente dele, o fragmento de um projétil repousa no chão.
Era esse o cenário na Vila Cruzeiro um dia após a comunidade ter sido alvo da segunda operação policial mais letal da história do Rio.
Pelo menos 25 pessoas perderam a vida durante a ação realizada pela Polícia Militar em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal.
O confronto se concentrou principalmente na parte alta da comunidade, na localidade conhecida como Terra Prometida. É uma região marcada pela vulnerabilidade social, onde as casas são feitas de madeira.
A moradora de uma delas diz que dormia com o marido e a filha pequena quando, por volta das 3h30, a casa começou a ser metralhada por policiais militares.
"A gente se jogou da cama para o chão e começou a gritar, dizendo que na casa tinha morador, que a gente era trabalhador. Mas eles disseram: 'morador é o caralho' e continuaram atirando", diz Ana, acrescentando que mora na região há três anos e que nunca tinha visto algo parecido.
Os moradores que conversaram com a Folha se disseram assustados e pediram para ter as identidades preservadas. Por isso, todos os nomes foram trocados.
Ana diz que ficou cerca de uma hora no chão tentando se proteger dos disparos. Ela conta que, após esse período, quatro policiais militares teriam invadido a casa; um deles era chamado de "Orelha" pelos colegas de farda. "Disseram para esse 'Orelha' que tinha gente escondida lá atrás, nos fundos da casa. Eles foram pra lá e mataram o cara a facadas."
A casa de dois cômodos -um banheiro e um quarto- ainda preserva evidências da operação desta terça. Nos fundos do imóvel de madeira, era possível ver sangue no chão. "Meu marido limpou uma parte, porque começou a dar mosca."
Em frente à geladeira perfurada havia o fragmento de um projétil que por pouco não atingiu a moradora. Ela diz que dormia junto com o marido em uma cama de casal ao lado da geladeira.
"Se eu morresse, a gente não teria nem dinheiro para pagar o enterro", afirma ela, que é diarista e ganha R$ 700. Para complementar a renda, vende picolés, atividade que precisou interromper. A geladeira deixou de funcionar após ter sido perfurada na operação.
Grávida de três meses, ela diz que pretende se mudar por causa da violência. "Estou desde terça-feira sem conseguir dormir. Eu não tenho paz. Me expulsaram do meu barraco."
O medo é compartilhado por Cláudia, que também tem uma casa na Terra Prometida. A moradora diz estar traumatizada e evita ficar no imóvel, que, segundo ela, foi sido invadido por PMs. "Na favela não tem só bandido. Também tem morador de bem."
A Folha de S.Paulo entrou em contato com a Polícia Militar para falar sobre as denúncias de violações, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Ainda na terça, a operação virou alvo de investigação no Ministério Público Federal e estadual para apurar eventuais violações de direitos.
Indignação no IML Já no Instituto Médico-Legal (IML), o clima nesta quarta (25) era de revolta e consternação entre parentes e amigos das vítimas. Durante a manhã, dezenas de familiares chegaram ao prédio para reconhecer os corpos dos mortos na operação.
Após identificar o corpo do parente, a irmã de Izaías Victor, de 22 anos, deixou o prédio chorando e gritando. Ela teve que ser amparada por amigos que a acompanhavam e optou por não se identificar.
"Acabaram com o rosto do meu irmão. Dói na alma, eu preciso chorar. Ele era muito bonito. Ai, me ajuda senhor, passa logo", gritava a irmã do jovem assassinado.
Uma amiga da família de Izaías, que pediu para ser identificada apenas como Fabiana, contou que o jovem havia sido baleado na perna no início da operação, quando fugiu em direção à mata na companhia de um amigo.
De acordo com ela, Izaías não estava armado. Após saber que o jovem havia sido alvejado pela PM, Fabiana e parentes foram em busca do rapaz, prestaram socorro e levaram o corpo, já sem vida, para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, zona norte do Rio.
"Ele tomou um tiro na perna e ficou escondido no meio do mato. Ele queria se entregar, mas os policiais o encontraram e deram um tiro na cara dele", relatou Fabiana.