Phillippe Watanabe (Folhapress)
A aplicação de vacinas contra a Covid-19 pelo setor privado perdeu força no Brasil, pelo menos por ora. O principal obstáculo para as empresas e associações que vislumbravam a ideia foi o posicionamento das farmacêuticas produtoras de só fornecer os imunizantes a governos. Também houve críticas às concessões previstas em lei.
A lei 14.125, de 10 de março deste ano, regulou a compra de vacinas pelo setor privado e diz que pessoas jurídicas podem comprar os imunizantes com autorização temporária para uso emergencial "desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI)".
Segundo a lei, após a imunização de grupos prioritários as empresas poderiam "adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita".
Principal entidade na defesa da vacinação privada, a ABCVAC (Associação Brasileira das Clínicas de Vacina) não concordava com a necessidade de doação. O órgão tecia um acordo para importação de 5 milhões de doses da vacina Covaxin, da farmacêutica Bharat Biotech, a partir de uma intermediação da Precisa Medicamentos. Hoje, a aquisição da Covaxin pelo governo brasileiro é um dos principais focos da CPI da Covid.
A reportagem tentou na última semana entrevistas com representantes da ABCVAC, mas a associação preferiu não dizer se ainda busca fornecer vacinas para clínicas privadas. A entidade apenas enviou uma nota, elaborada no fim de março, sobre as denúncias contra o governo Bolsonaro, a Precisa Medicamentos e a Bharat Biotech. No texto, afirma que "repudia veementemente toda e qualquer ação ilícita em qualquer esfera de negociação" e diz que, além da Covaxin, a ABCVAC tem buscado alternativas desde o início da pandemia, mas que a Bharat Biotech foi a única a "oferecer parte da produção para o mercado privado brasileiro, tratando-se de uma venda adicional e que não iria interferir em qualquer negociação com setores públicos de nenhum país".
A Coalizão Indústria, que conta com diversos setores produtivos, como de aço, automotivo, construção civil, entre outros, era outra entidade que buscava a vacinação privada. À Folha a assessoria da associação diz que a iniciativa não avançou e não tem perspectiva de retomada.
A CNI (Confederação Nacional da Indústria) disse em nota à reportagem que avaliou a aquisição de vacinas para "contribuir com o poder público na execução do Plano Nacional de Imunização", mas que a ideia não foi para frente. A confederação diz também que disponibilizou as estruturas da Sesi (Serviço Social da Indústria) para apoio na aplicação de vacinas.
A 99 é outra que estudava como vacinar funcionários. Agora, porém, a empresa diz que "não procurou ou negociou com nenhuma empresa para adquirir vacinas" e que contribuiu com o PNI por meio da doação de R$ 3 milhões divididos entre o Instituto Butantan e a Fiocruz.
Entre os consultados pela Folha, somente o Sindicato dos Comerciários de São Paulo disse manter em pé o plano da vacinação privada. A entidade conseguiu, no início de maio, uma liminar na Justiça autorizando a compra de imunizantes sem a necessidade de entrega das doses ao SUS. A decisão também autoriza a vacinação de familiares dos funcionários.
A ideia, segundo Ricardo Patah, presidente do Sindicato dos Comerciários de SP, é imunizar os associados da cidade de São Paulo, o que representaria cerca de 500 mil pessoas. Um dos grandes setores interessados é o de supermercados, que não parou na pandemia, diz ele. Patah afirma ainda que o sindicato só busca acordos, e caberia aos empresários alocar verbas para a compra de vacinas.
O presidente do sindicato afirma, porém, que a associação enfrentou dificuldades para avançar nas negociações com as farmacêuticas. Segundo ele, a única que deu prosseguimento ao assunto é a União Química, que busca a produção e importação da vacina russa Sputnik V, do Instituto Gamaleia.
Tanto a Covaxin como a Sputnik V receberam apenas aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para a importação de doses das vacinas contra a Covid, e ainda de forma condicional e com restrições.
A Folha procurou a União Química. Luciano Reimberg, diretor de Outsourcing da empresa afirmou que, no primeiro trimestre de 2021 empresas transnacionais, bancos e associações de taxistas, entre outros buscaram a farmacêutica. "Na medida que firmamos posição de que seríamos fornecedores com prioridade ao PNI, essas consultas naturalmente se encerraram", disse o representante, em nota.
Na última semana, São Paulo iniciou a vacinação de pessoas da casa dos 30 anos. Mesmo o avanço para idades menores não desincentiva a busca do sindicato, que tem média de 30 anos entre seus associados, segundo Patah. A ideia é que, mesmo que não possam usar os acordos agora, eles sirvam para a revacinação no futuro próximo.
"Essa questão da Covid não é deste ano, é uma questão que veio para ficar", diz Patah. "Nós vamos ter que vacinar igual à vacina da gripe. Vamos buscar uma possibilidade de estar sempre à frente com os nossos representados."
É possível, portanto, que a aquisição das vacinas contra a Covid por empresas avance no ano que vem diante da necessidade de uma nova dose de reforço, que poderá ser anual ou não, dependendo da circulação do coronavírus. A reportagem também entrou em contato com as farmacêuticas que produzem vacinas autorizadas para uso no Brasil e perguntou sobre as negociações atuais com o setor privado e possibilidades de acordos futuros.
A Pfizer disse que, por causa do acordo de entrega de doses firmado com o Brasil, não tem condições de negociar o fornecimento de vacinas para estados, prefeituras e empresas. A farmacêutica afirma que não há um prazo para que isso mude e, consequentemente, passem a ser possíveis acordos com o setor privado.
A AstraZeneca também disse que todas as doses da vacina estão atualmente atreladas a acordos com governos e organizações multilaterais pelo mundo, como a Covax Facility, da OMS (Organização Mundial da Saúde). "A AstraZeneca atualmente não disponibiliza a vacina por meio do mercado privado ou trabalha com qualquer intermediário no Brasil", diz a empresa.
A Folha entrou em contato com a Janssen, braço farmacêutico da Johnson & Johnson que produz uma vacina de dose única contra a Covid, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.
Também não houve contato com a Sinovac, que desenvolveu a Coronavac, a vacina produzida no Brasil pelo Instituto Butantan. O instituto é ligado ao governo paulista e tem como foco o fornecimento de imunizantes para atender o Ministério da Saúde.
A Folha procurou o Ministério da Saúde, mas não teve retorno até a publicação da reportagem. A Anvisa também foi procurada para comentar a ação, da qual é parte, do Sindicato dos Comerciários. A agência afirmou que "está acompanhando a ação e adotando as medidas judiciais processualmente cabíveis".