Giuliana Miranda (Folhapress)
O exótico fóssil do Ubirajara jubatus, primeiro dinossauro não aviário encontrado com as penas preservadas na América Latina, não vai voltar para o Brasil. Apesar das evidências de que o exemplar fora levado irregularmente para o exterior, o Museu de História Natural de Karlsruhe anunciou que o material permanecerá na Alemanha. A instituição afirmou que o fóssil chegou ao país antes da entrada em vigor da convenção internacional que estabelece a devolução dos artefatos e que, por isso, é legalmente propriedade do Estado alemão de Baden-Württemberg.
"Ele [fóssil] foi adquirido antes da entrada em vigor da Convenção da Unesco sobre os Meios de Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência Ilícita de Propriedade de Bens Culturais e foi importado em conformidade com todas as regulamentações alfandegárias e de entrada". O museu afirma que o fóssil está "preservado para a posteridade", estando disponível para a comunidade internacional para propósitos científicos.
Embora a convenção da Unesco seja da década de 1970, uma lei da Alemanha, de 2016, preconiza que todo material levado para o país antes de 26 de abril de 2007 é considerado como legalizado no país.
A decisão da instituição enfureceu a comunidade paleontológica brasileira, que inundou as redes sociais com acusações de que os alemães desrespeitam as leis internacionais e a legislação brasileira.
Os cientistas voltaram a se organizar usando a expressão #UbirajaraBelongstoBR (Ubirajara pertence ao Brasil), que ganhou enorme popularidade em dezembro de 2020, quando a descoberta da nova espécie de dinossauro brasileiro foi publicada na revista especializada Cretaceous Research.
Na noite de sexta, os brasileiros "invadiram" a página de resenhas do museu alemão no Google e passaram a dar notas baixas -junto a #UbirajaraBelongstoBR e acusações de roubo- para diminuir a avaliação média da instituição.
Diante das evidências de que o fóssil tinha saído de forma irregular do território brasileiro, o periódico acabou retirando o artigo de seu site pouco tempo depois. O presidente da SBP (Sociedade Brasileira de Paleontologia), Renato Ghilardi, repudiou a decisão do museu alemão.
Ele relata que a instituição tentou obter o retorno do fóssil por via amigável, e que, inicialmente, o representante do museu nas negociações, o paleontólogo Eberhard "Dino" Frey sinalizou que havia a intenção de devolver o dinossauro. Frey foi um dos autores do trabalho que descreveu o Ubirajara jubatus e o responsável pela remoção do fóssil do Brasil.
"Em um primeiro momento, entre dezembro e janeiro deste ano, a gente estava com um movimento bom. O Frey, na sua representatividade do museu, nos disse que a instituição estava com vontade de devolver, que o museu achava interessante fazer isso. Mas, como eles estavam num processo de pico de pandemia por lá, as reuniões do museu com o governo alemão estariam sendo adiadas", relata.
Segundo Ghilardi, após meses de silêncio e tentativas em vão de comunicação, o museu respondeu, em 1º de setembro, que afinal não iria abrir mão do dinossauro.
"Ele [Frey] mandou um email para nós avisando que fósseis e bens culturais que estão na Alemanha e foram coletados previamente à data estipulada na lei [abril de 2007], obrigatoriamente fazem parte do patrimônio alemão. Eles consideram, portanto, que o material estava de forma legal no país, e que não haveria então possibilidade de devolução do patrimônio alemão", completou.
O presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia teme que a decisão abra o precedente para que outras instituições estrangeiras adotem uma postura semelhante.
"A saída vai ser a gente trabalhar junto ao Ministério Público. Essa lei alemã não pode, em teoria, suplantar acordos internacionais, como os que o Brasil e a Alemanha fizeram junto a Unesco", completa.
Embora antiga e com normas publicadas em diferentes momentos, a legislação brasileira tem regras bastante restritivas sobre o tema. Desde 1942, o país considera que os fósseis são patrimônio nacional. É proibido vendê-los e é obrigatório ter uma autorização para tirá-los do país. Uma portaria do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), de 1990, proibiu terminantemente a saída do território nacional dos chamados holótipos -exemplares usados como referência na descrição das espécies-, como é o caso do fóssil do Ubirajara.
Apesar das limitações legais, o tráfico de fósseis brasileiros para o exterior é uma realidade antiga. Para ter acesso a animais pré-históricos que viveram no que hoje é o território do Brasil, muitos cientistas brasileiros precisam se deslocar até instituições da Europa e dos Estados Unidos.
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a paleontóloga Aline Ghilardi (sem parentesco com o presidente da SBP) é uma das principais articuladoras dos protestos nas redes sociais, que já renderam mais de 3.000 comentários apenas no perfil do Instagram do museu.
"Dinossauros são carismáticos, eles chamam a atenção, e este em especial tem algumas características que funcionaram para chamar muito a população para se mobilizar. O não retorno deste fóssil, mesmo depois de um diálogo franco e amigável com o museu alemão, poderia ser encarado como uma afronta com o que os cientistas brasileiros produzem", avalia.
"O tipo de resposta que foi dado assusta, em especial a mensagem que foi colocada no Instagram do museu. Passa uma mensagem que eles são mais importantes do que a gente, de que a legislação alemã é mais importante do que a do Brasil", completa.
Na via judicial, o Ministério Público do Ceará também tem investido em diversas ações legais para o repatriamento do patrimônio nacional.
Curador do Museu do Cariri, região onde o Ubirajara viveu há 110 milhões de anos, o paleontólogo Renan Bantim lamentou a decisão do museu alemão. Segundo ele, devoluções amigáveis têm sido negociadas, mas ainda são raridade.
Uma exceção é um aracnídeo pré-histórico que também viveu na região do Araripe. Os pesquisadores batizaram o animal com o nome de Cretapalpus vittari, uma referência a Pabblo Vittar, em homenagem ao Brasil. O fóssil de referência da espécie foi levado irregularmente para os Estados Unidos.
"Está acontecendo uma negociação com a Universidade do Kansas, mas algo amigável, sem envolvimento jurídico. Eles nos procuraram. Ainda estamos providenciando documentos para cessão definitiva do acervo para o Brasil, mas tudo indica que em breve estará no Museu de Santana", relata Bantim, que também é professor da URCA (Universidade Regional do Cariri).
OUTRO LADO
Em nota, o time internacional de autores que descreveu a espécie afirmou que o material foi retirado do Brasil em 1995, com autorização do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), órgão já extinto que cuidava do patrimônio de fósseis do Brasil.
O documento que autorizou essa retirada, porém, usa uma linguagem genérica -fala apenas em "caixas com fósseis"- e é assinado por um funcionário condenado por fraudar laudos para a extração de esmeraldas. A SBP questiona, inclusive, a legitimidade do texto.
Em email enviado à Folha na época da publicação do artigo na Cretaceous Research, o paleontólogo britânico David Martill, um dos autores, ironizou a tentativa de repatriação do fóssil.
"Eu ficaria muito feliz de ver todos os fósseis brasileiros ao redor do mundo devolvidos ao país, como eu já disse muitas vezes. Felizmente, isso não aconteceu dois anos atrás, pois agora todos eles estariam reduzidos a cinzas após o trágico fogo que destruiu o maravilhoso Museu Nacional do Rio", afirmou.
A ANM (Agência Nacional de Mineração), que em 2018 substituiu o DNPM, não respondeu ao pedido de confirmação de autorização para a saída do fóssil do Brasil.