Por: Ítalo Nogueira e Nicola Pamplona
Durante as Olimpíadas de 2016, o Inea (Instituto Estadual do Ambiente) sobrevoou diariamente a região sul da baía de Guanabara para monitorar o aparecimento de manchas de óleo.
Embarcações também faziam parte do esforço para manter a qualidade do espelho d'água, palco das competições de vela dos Jogos.
Nos 22 dias da operação de monitoramento, foram encontradas 76 manchas -mais de 85% detectadas a partir das aeronaves. Só no dia 12 de agosto daquele ano foram 7.
Os números ligaram um alerta no órgão ambiental do estado não apenas pela quantidade, mas, principalmente, pela comparação com o histórico de identificação de mancha de óleo no corpo d'água da baía. Entre 1983 e 2016, a média era de oito ocorrências por ano.
A partir dos dados do período olímpico, a estimativa do Inea é de que o despejo real de óleo na baía chegue a 1.325 por ano. Entre 2017 e 2021, novamente sem sobrevoos diários, a média de manchas detectadas ficou em 12.
A disparidade revela o descontrole sobre o real passivo ambiental causado pelo uso crescente da baía por embarcações, principalmente ligadas à indústria do petróleo. Os riscos e a ocupação do espelho d'água são desafios que permanecem mesmo com o eventual cumprimento das novas promessas de despoluição.
Localizada em frente aos maiores campos de petróleo do país, a baía de Guanabara é um dos principais pólos da atividade de apoio a plataformas em alto mar.
Do Porto do Rio de Janeiro e de bases em Niterói saem embarcações que vão ajudar na instalação de plataformas e sistemas submarinos ou apenas fornecer mantimentos para as plataformas.
A atividade na região cresceu na década passada, diante da saturação da base de apoio da Petrobras em Macaé e do aumento das operações por petroleiras privadas no país. Atualmente, enfrenta a concorrência do Porto do Açu, no litoral norte fluminense.
Ainda assim, segundo a Companhia Docas do Rio de Janeiro, o fluxo segue intenso. Entre janeiro e setembro de 2021, 1.336 embarcações de apoio passaram pela baía. Antes da pandemia, que reduziu o tráfego dos navios, o número chegou a 2.926. Estudo da companhia feito em 2014 previu para 2030 um total de 6.000 atracações.
Ao lado da Ponte Rio-Niterói, um ponto de fundeio abriga dezenas de embarcações à espera de viagens ou de contratos. Em 9 de novembro, havia 42 delas, segundo informações do sistema de rastreamento de navios Marine Traffic.
Em nota, o Inea afirma que desde outubro deste ano executa "projeto que tem o objetivo de realizar monitoramento marítimo periódico na região".
As embarcações se somam aos dutos e terminais da Petrobras espalhados no fundo e em ilhas da baía como risco potencial de um acidente.
O mais grave ocorreu em 2000, quando a ruptura num dos dutos causou o vazamento de cerca de 1,3 milhão de litros de óleo combustível, atingindo quase um terço do espelho d'água, incluindo a APA (área de proteção ambiental) de Guapimirim -uma das poucas áreas de manguezal preservadas.
O histórico de grandes vazamentos, porém, é mais antigo. O primeiro registrado foi em 1975, quando o navio iraniano Tarik Ibn Ziyad despejou 6 milhões de litros de óleo na baía.
"Essas embarcações transformam a baía de Guanabara num estacionamento industrial de alto risco", afirma Sérgio Ricardo Potiguara, fundador do Movimento Baía Viva.
As atividades da indústria do petróleo e marítima tomam cerca de 60% do 328 quilômetros quadrados do espelho d'água, de acordo com o atlas do Comitê da Bacia Hidrográfica da baía.
Somada às áreas poluídas, de proteção ambiental e outras, restam aos pescadores cerca de 12% para atuar sem restrição
Segundo Alexandre Anderson, presidente da Ahomar (Associação Homens do Mar), a redução de área tem gerado conflitos entre os pescadores artesanais que usam a baía como local de trabalho.
"Hoje divido esse espaço com o pescador de São Gonçalo, que está sendo espremido pelo terminal de GNL e GLP. Gera-se um conflito entre comunidades pesqueiras. Essa disputa não é natural. Não fomos nós que pedimos isso", afirmou ele, que atua em Magé.
Até mesmo o deslocamento dos botos-cinza, símbolo da capital do estado, é afetado pelo uso intensivo da baía pela indústria do petróleo.
Além dos ferimentos causados por acidentes, a poluição sonora sob o espelho d'água interfere na comunicação dos cetáceos.
"Aqueles navios parados ficam com gerador ligado e fazem um barulho desgraçado dentro da água. Os botos usam mais o lado de São Gonçalo e Niterói, e propusemos uma espécie de corredor para eles. Mas isso nunca foi para frente", afirma José Lailson Brito Junior, coordenador do Laboratório Maqua (Mamíferos Aquáticos) da Faculdade de Oceanografia da Uerj.
A pressão da indústria sobre a baía seria ainda maior caso o Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) tivesse saído por completo do papel. Desenhado para abrigar uma refinaria, petroquímicas e uma unidade de tratamento de gás em Itaboraí, o projeto naufragou após o início da Operação Lava Jato.
O complexo aumentaria o trânsito de embarcações, ampliaria a quantidade de dutos sob a baía e seria um indutor de crescimento urbano próximo à APA de Guapimirim.
Atualmente, apenas a unidade de gás está em construção no Comperj. Petrobras e o estado assinaram em setembro um convênio para tentar atrair para a área de 43 mil metros quadrados indústrias que dependem do combustível, como plantas química, de fertilizantes e de vidros.
A expectativa é que a infraestrutura local e a proximidade com o fornecimento garantam investimentos de R$ 15 bilhões.
Apoiadora do projeto, a Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) defende que a atração de novas indústrias não coloca em risco o projeto de despoluição.
O gerente de Sustentabilidade da federação, Jorge Peron, diz que estudo de 2012 já mostrava que a atividade industrial tinha pouca influência na poluição da baía, provocada principalmente pela falta de saneamento básico no entorno.
"Complexos industriais vão continuar sendo implantados e operados em todo o país e também no entorno da baía. Mas hoje há questões que vêm surgindo de forma mais recorrente na agenda empresarial, na agenda ESG. Tudo isso é pressão adicional para que a indústria olhe com muita atenção para o propósito da sua atividade", afirma Peron.
O resíduo industrial foi, por muito tempo, um dos grandes problemas da baía de Guanabara. Fiscalizações iniciadas na década de 1980 reduziram o passivo. Em 2011, o governo do estado assinou um TAC (Termo de Ajuste e Conduta) com a Reduc (Refinaria Duque de Caxias) que também reduziu significativamente os impactos no corpo d'água.
"A Reduc poluía mais do que outras 130 empresas juntas. Fizemos um TAC de R$ 1,1 bilhão para exigir mudanças tecnológicas", disse o deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), ex-secretário estadual do Ambiente.
Potiguara, porém, defende "uma moratória nos licenciamentos ambientais" da baía.
"Vivemos aqui uma expansão ilimitada da indústria do petróleo. Várias espécies estão em risco de extinção e quase não há mais área para pesca. A baía vive um sacrifício ambiental", disse o ambientalista.
Para o pesquisador Francisco Mendes, do Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da UFRJ, a baía de Guanabara tem espaço para os diferentes usos econômicos atuais: lazer, pesca, indústria e transporte.
Falta, para ele, clareza do poder público sobre como dividir o espelho d'água da baía e ordenar a exploração de seu entorno. Mendes afirma que esse é o principal debate a ser feito após a eventual concretização das novas promessas de despoluição.
"Afinal de contas o que a gente quer da baía de Guanabara? Que ela seja um porto importante? Um local de serviços para a indústria de óleo e gás? Que seja uma área de lazer? Retome seu papel de produtora de produtos pesqueiros? Palco de competições esportivas? Um espaço para meio de transporte mais bem estruturado?", questiona ele.
"São diferentes usuários, mas não vemos uma conversa de forma integrada. Com certeza tem espaço para todo mundo. O problema é negociar esse espaço. Isso não é simples. Faz parte de um amadurecimento político que o Brasil ainda precisa viver", afirma Mendes.